O Pescador que nunca pescava nada
Raffaello Bergonse - texto e ilustrações
(história adaptada)
Alguma vez ouviram falar naquele pescador que nunca pescava nada? Podem encontrá-lo todos os dias, lá ao fundo do pontão. É aquele velhote de rosto enrugado, sentado num banquinho, com uma cana muito comprida e fininha nas mãos, e um balde ao lado. Reparem como ele mal se mexe, com os olhos perdidos na água. Reparem também que há sempre um sorriso muito leve nos cantinhos da sua boca.
Passou-se uma coisa com ele que gostava de vos contar. Há muitos, muitos anos, era ele ainda um jovem, a coisa de que mais gostava na vida era ir à pesca. Pescava nos rios e no mar, pescava em riachos e ribeiros, albufeiras, lagos e barragens, pontões e praias. Pescava das rochas, em águas de fundos de areia e de pedra, límpidas ou turvas. Não interessava se chovia ou fazia sol. Sempre que podia, lá estava ele com a sua cana. Com um gesto rápido, atirava a linha para a água, e ficava à espera que algum peixe abocanhasse o isco, com os olhinhos fixos naquela bóia colorida, que andava para cima e para baixo com as ondas.
Só havia um problema: é que nunca apanhava nada.
O material, tinha-o todo.
Canas e carretos, linhas, bóias, chumbadas, anzóis e um balde. Tinha galochas e um cesto para o peixe, um chapéu para a cabeça e um banquinho para se sentar (o banquinho ainda é o mesmo). Mas o resultado era sempre igual. Nem um peixe mordia o isco.
Na verdade, nessa altura, houve uma vez, uma só vez, em que apanhou qualquer coisa.
Foi neste mesmo pontão, numa tarde de sol. De repente a bóia desapareceu, e quando ele começou a puxar a linha, havia qualquer coisa a remexer-se debaixo de água! “Um peixe!”, pensava ele, de pé, a recolher a linha, com o coração aos saltos, à medida que os segundos passavam.
Da água saiu então um pequeno peixinho prateado, retorcendo-se. O pescador olhou para ele de perto. Era um peixinho jovem.
Era pequeno de mais. Segurando-o cuidadosamente para não o magoar, devolveu-o à água.
Passaram-se semanas, meses, e nunca mais apanhou nada. Às vezes a linha voltava com o isco no anzol. Outras vezes o isco desaparecia, e só voltava o anzol brilhante a balançar com o vento.
Quando chegava a casa, desanimado, a mulher dizia-lhe, trocista:
“Lá foste tu dar de comer aos peixes outra vez. Se juntasses todo o dinheiro que já gastaste em isco para nada, íamos os dois comer caldeirada a um restaurante durante uma semana!” Ele não ligava.
Ela não compreendia o que ele sentia quando estava ao pé da água, quando olhava com muita atenção para aquela boiazinha que podia desaparecer a qualquer momento.
Ela não compreendia a sensação de estar sozinho em frente àquele mar sem fim, que às vezes era azul e transparente, e às vezes sombrio e cheio de segredos, debaixo de um céu de chuva e gaivotas.
A mulher não compreendia aquela sensação de mistério que o pescador sentia quando ficava quieto a olhar para a água, fosse num rio ou no mar, sabendo que a qualquer momento, e podia ser já, algum animal daquelas profundezas misteriosas podia abocanhar o seu isco e dar um puxão na linha.
Ah, como o seu coração saltaria quando isso acontecesse!
Mas os peixes são uns bichos difíceis de compreender. Talvez o isco não fosse o melhor. Ou a linha fosse muito grossa, ou o anzol muito grande, ou a bóia muito pesada, ou talvez o peixe não tivesse fome. Podia ser que a maré estivesse muito cheia, ou muito vazia, ou o vento estivesse a soprar para o lado errado.
O importante é que ele não desanimava nunca, e quase todos os dias lá ia, a seguir ao trabalho, ou antes do trabalho, conforme lhe dava mais jeito.
Agora leiam com muita atenção, porque vocês não vão acreditar no que acabou por acontecer.
Certa madrugada de Outono, lá se ouviram no ar as galochas de borracha do nosso amigo. Com passos decididos, como sempre, atravessou o pontão ate lá ao fundo.
O mar ondulava ao de leve. Havia massas de nuvens à distância, anunciando alguma chuvada, lá onde a vista mal alcançava.
O pescador colocou um belo camarão descascado no anzol. Sentiu o vento e o cheiro a maresia. Com um movimento rápido com a cana, fez a bóia saltar por cima da sua cabeça e ir aterrar na água, lá à frente. Lá ficou ela a saltitar para cima e para baixo com as ondas. Passaram-se alguns minutos.
De repente, a pequena bóia desapareceu. Ele olhou com toda a atenção para a água. Mas lá apareceu outra vez.
E desapareceu de novo!
Sentiu um terrível puxão na linha, e outro.
Alguma coisa tinha mordido o isco!
O nosso amigo levantou-se, com as pernas a tremer e os olhos esbugalhados. Puxou e puxou a linha, e à medida que a linha era recolhida ele conseguia discernir alguma coisa grande e escura quase à superfície da água. Entretanto, outro pescador que andava ali perto vira tudo e já estava ao pé dele, entusiasmado, pronto a ajudá-lo a trazer para terra o que quer que fosse que aí vinha.
Era um peixe, enorme e brilhante. Era um robalo.
Com as guelras a abrir e a fechar, e uns olhos muito abertos que pareciam zangados, olhava para os dois homens enquanto se agitava no chão. Tinha um brilho esverdeado, e parecia feito de escamas de prata.
Eles olhavam para ele, admirados com o seu tamanho e com a sua elegância. Era quase do tamanho do braço do pescador.
Agora vou contar-vos um pequeno segredo: este peixe magnífico não era outro senão aquele peixito pequeno que ele apanhara há muitos meses. Desde então, havia viajado para outras paragens, e alimentara-se nos vastos oceanos. Conhecera profundezas que nunca nenhum homem viu. Depois, seguindo o seu instinto, voltara para se alimentar nas nossas costas, e aqui estava ele!
Nessa noite houve festa lá em casa.
O peixe deu para a família toda e, antes de ser cozinhado, o pescador não deixou de tirar uma fotografia da sua captura. A fotografia amareleceu com o passar dos anos, mas ainda lá continua, na parede da sala.
A maioria das pessoas não acredita que o peixe era o mesmo que ele apanhara antes. “O peixe não crescia tão rápido”, talvez digam, ou “Quais são as possibilidades do mesmo peixe voltar àquele local passados tantos meses, e de ser apanhado pelo mesmo pescador? Essa história parece-me um grande disparate!”
Têm razão. Não é muito provável. Mas eu sei que era o mesmo peixe. Sabem porquê?
Quando meu pai apanhou o peixinho, eu estava lá. Era apenas um rapazinho, mas lembro-me como se fosse hoje. Olhei para aquele bichinho pequenino na sua mão, e nunca mais me esqueci daqueles olhos, da cor das sua guelras, do formato da sua cauda, das cores das escamas.
Também estava presente quando ele o apanhou de novo. Mal olhei para aqueles olhos escuros uma vez mais, soube que era o mesmo bicho. Podem acreditar ou não, vocês é que sabem…
Bem, depois daquele dia, parece que a sorte do meu pai mudou. Às vezes pesca alguma coisa, às vezes não. Ao longo destes anos todos já pescou milhares de peixes, de todas espécies que podem imaginar.
Só nunca percebi como durante tanto tempo não apanhou nem um, para depois reencontrar o mesmo que pescara, já crescido.
É um grande mistério, mas afinal o que é a vida senão uma série de mistérios?
Agora, que já está reformado, o meu pai senta-se ali no pontão todos os dias com a sua cana.
Eu segui-lhe as pisadas. Tenho um pequeno barco, e a coisa que mais gosto é de sair de manhã cedo, e ir para o mar.
Aponho sargos, safios, robalos, salemas, abróteas, solhas, e muitos outros. E sempre que apanho um desses habitantes dos oceanos, sinto aquilo que animou e anima todos nós, pescadores, aquela alegria que não consigo descrever apenas com palavras.
Quando não tenho sorte (o que acontece muitas vezes), lembro-me da história do meu pai, e da lição que aprendi com ele.
Afinal, é assim na pesca, mas também em muitas outras coisas.
Lá porque tudo não corre da melhor maneira logo desde o início, nunca devemos desistir. Se continuarmos a tentar, alguma coisa boa acaba sempre por acontecer.
Aprendi com ele que o que é mesmo importante não é conseguir fazer tudo bem logo à primeira.
É insistirmos em continuar a fazer aquilo de que realmente gostamos.
Raffaello Bergonse
texto e ilustrações